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Crônica: A Taça

I
Era como se visse seu reflexo num espelho. Conhecia aquele sentimento. Às vezes pegava-se olhando para o nada, enquanto era preenchido por essa ideia de estar vendo outra versão de si. “Isso é bobagem”, sempre dizia. Naquele dia o outono já havia chegado em seu auge, e sentia a ponta dos seus dedos doerem com o frio que fazia há dois dias. As folhas todas estavam no chão, secas, e achava aquilo bonito.
Quando olhava para baixo, via o passado. Sua imagem desfigurada refletida na taça o lembrava de alguns dias idos. O vinho tinto manchara, noutrora, a toalha da mesa, assim como ela manchara sua percepção da realidade. Via-se nela. E era impensável observar o mundo sem notá-la nos pequenos nuances corriqueiros: lembrava e ria, às vezes, dela esticando-se para alcançar a árvore e cheirar as folhas; o vinho que compartilhara à noite agora desce amargo. 
A música é inaudível. Lembranças que em seu âmago traziam felicidade, mas que duravam, em sua maioria, até o momento onde a distância batia à porta, e a realidade tornava-se cruel. 
— Você sabe porque eu gosto do outono, é a melhor parte do ano — ela o ouviu dizer, enquanto caminhavam — não é frio, nem quente, por mais que aqui sempre seja frio, não temos opção. Era a primeira vez que ela estava lá e a primeira vez que viam-se pessoalmente. Conheciam-se, é verdade, há algum tempo, mas moravam longe um do outro.
— O clima de lá é parecido, eu disse, né? — eles caminhavam lado a lado, como se a altura fizesse com quem fossem, de fato, semelhantes, mas ela possuía uma beleza que destoava da dele. Não era feio, mas também não chamava atenção. Ela sempre estava de vestido. Sentia-se livre assim, e aquele era particularmente bonito, preto, com bolinhas, e tinha um decote discreto.
— Você acha? — ela passou a mão pelo vestido e o analisou quando ele disse que achava-o bonito — na verdade não é um vestido, é uma blusa, só é grande o bastante para parecer um vestido em mim.

II
O céu estava nublado. As estrelas escondiam-se nas nuvens e tudo que via-se ao olhar para cima era um cinza-quase-escuro fosco e sem graça. As calçadas iluminadas pelos postes brilhavam por estarem molhadas. Chovera alguns minutos antes deles pisarem na porta do empório.
— Lá em cima está aberto? — e o garçom chegou mais perto para ouvir melhor, a música estava alta e todas as mesas do térreo estavam ocupadas — Está aberto lá em cima?
— Só para maiores — ele ouviu.
— Nós dois somos maiores de idade, então vamos subir.
— Só para maiores — o garçom repetiu, agora sorrindo.
Já estivera naquele lugar em outros momentos e conhecia o garçom. Era pequeno, um pouco gordo e não tinha quase nenhum cabelo. Sua figura sempre remetia a um professor de física que teve no Ensino Médio, e era impossível não rir disso.
— Ele está rindo da sua altura — ela disse, tentando esconder o riso.
Seu rosto ficou vermelho. Era normal que sentisse vergonha nesses momentos, aquele era seu ponto fraco. Ela não ligava, mas ele sim. Tinham mais ou menos a mesma altura. Tentou ignorar.
— Pois eu não volto mais aqui — disse enquanto subia as escadas — isso é um absurdo.
O garçom repetiu mais alguma coisa que ele não pode ouvir. Viu-a subir em sua frente e olhava para suas pernas. Ela tinha pernas bonitas, com duas tatuagens. E sempre sorria.
Sentaram-se na sacada, numa mesa de ferro que balançava. Era uma bela vista, apesar do tempo ruim.
— Então, o que vão tomar? — disse outro garçom.
— Vinho, por favor — ela respondeu. Havia feito há um tempo atrás uma aula de degustação de vinhos.
— Eu peço que vocês desçam, então, porque estamos sem a carta de vinhos aqui em cima.
A estante era humilde, dividida por países. Ela mexia nas garrafas chilenas.
— Eu sempre quis tomar um vinho do Porto — ela não levou a sugestão em conta.
— Os merlots são esses? — e o garçom concordou — quero este, então — e entregou a garrafa.
Subiram. Enquanto passavam pelos degraus, alguns quadros chamavam a atenção. Aquele era um bom lugar, sobretudo pelas mesas de madeira e pelo cappuccino. Quase sempre a música que tocava era agradável. Desde Novos Baianos até Mutantes. Claro que, às vezes, caíam na tentação de fazer os clientes ouvirem Lana Del Rey.
— Imagino se alguém já pulou daqui — ninguém morreria, é verdade, mas serviu para que ela risse. Quando ria fechava os olhos, que eram castanhos. Eles lembravam alguém, que também tinha olhos assim, mas tudo não passava de uma ideia que aos poucos evanesceu.
— Aqui é um bom lugar, acho que ninguém pularia daqui. A não ser que tivesse tendo um dia ruim. Agora ali — havia do outro lado da rua uma escola; grande, branca, com grades nas janelas, com cortinas limpas, tão brancas quanto uma nuvem que desliza sozinha no céu num dia ensolarado; com uma santa na entrada -, ali alguém já teve ter pensado em se jogar da janela, por puro tédio.
— Com licença, o vinho.
O garçom abriu a garrafa. A rolha era de plástico, e ela virou o rosto quanto notou isso — não gosto muito dessas, disse. Serviu as taças, colocou a garrafa d’água ao lado da de vinho e serviu dois copos pequenos com ela. Dez minutos depois, ele havia quebrado a borda da sua taça, com os dentes.
— Eu não estava mordendo ela — disse enquanto olhava fixamente para seus olhos. Eles riram e mais tarde não precisaram pagar a taça, nem o açúcar que caiu da sacada.

Garoava. Foram juntos para casa, e caminharam, lado a lado, por mais alguns dias, até que a realidade veio à tona, e a distância por algum momento havia sumido, retornara. O açúcar da mesa permaneceu a carteira, como lembrança. E o brinco dela também, perdido no lençol da cama. 

 Texto: Douglas Kuspiosz

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