Peguei-me certa vez
perdido numa rua. Era como se eu soubesse onde estava, ou ao menos
desconfiasse. Os prédios eram comuns, as pessoas todas iguais. Tinham,
invariavelmente, o mesmo rosto. As mesmas roupas, os sapatos marrons. A capa de
chuva – mas não chovia. Via-me só, e perdido, mas, por algum motivo, numa
completa familiaridade com aquele lugar todo. Caminhei, então, até o único dos
prédios que estava iluminado. As ruas estavam escuras, mas ele brilhava ao fim
da principal, como se fosse o único local na cidade inteira onde a vida ainda
estava presente.
Entrei pela porta de vidro e subi alguns degraus. O chão
tinha um tapete que estendia-se por todo o piso do hall de entrada, e era
cinza-escuro. A iluminação era num tom alaranjado, e me lembrava um filme.
Conforme caminhei pelo salão, um dos atendentes veio até mim. Entregou-me um
cartão, estava tudo certo. Seu quarto já está pronto, senhor. Ele disse isso.
Mas seu rosto não movia-se. Era uma pintura estática, sem detalhes. Um borrão
que emitia sons, e alguns poucos pude identificar. Aquilo tudo era
demasiadamente familiar. Era como se fosse tudo premeditado e eu soubesse o que
viria a seguir. Estava sem celular, e não lembrava de em algum momento na vida
ter comprado aquelas roupas que vestia. Eram todas estranhas, mas não
importava. Lá fora, debaixo das luzes dos postes, as pessoas desfiguradas
caminhavam, e da parte inferior de seus supostos rostos saiam fumaças
condensadas, e encolhiam-se em si mesmas, dentro dos casacos e das jaquetas
para fugir do frio que as afrontava de forma quase vulgar. Algumas até
apressavam o passo, como se quisessem sair logo dali ou, quem sabe,
esquentar-se assim. O elevador não funcionava.
O que era muito estranho. As portas abriram-se e ele não
estava lá. Havia um fosso artificial. De metal. Com fios, concreto, num cinza
absoluto. Como se tentasse me impedir de subir, como se quisesse que eu caísse.
Era o térreo, mas o buraco era muito, muito fundo. Não podia ver seu fim, e a
vontade de pular, naquele momento, era quase incontrolável. Mas, como se alguém
me desse um soco, voltei à realidade. Por alguns segundos peguei-me com uma
imagem na cabeça, com uma lembrança que desestabilizara-me. Era o passado. O
fosso chamava-me, e se não fosse uma brisa fria que senti quando alguém abriu
as portas de vidro eu provavelmente teria me jogado. Ninguém poderia evitar.
Era aterrador.
As escadas alongavam-se infinitas em minha frente. E
nelas, conforme subia, a cada passo, a cada degrau superado, meu peito
apertava, como se houvesse algo que pudesse, de algum modo, atacar-me. Era uma
ansiedade que já sentira em outros momentos, mas não conseguia lembrar de
nenhum. Era como se tudo que outrora fora vivido desaparecesse, e minha vida
começasse naquele dia, naquele fim de tarde, naquele lusco-fusco frio, feio e
vulgar; e desconhecido que me via em meio. Não sei por quanto tempo subi, mas
em cada parede via aquele fosso e poucas vezes não pensei em atirar-me nele.
Era como se uma lembrança puxasse-me para ele, como se a visse e sua voz chamasse-me.
E ela era calorosa, havia harmonia, beleza, havia um sentimento que contrastava
com todo o universo melancólico daquele dia.
A porta era gigante. Sentia-se acuado frente à ela.
Gigante, sem fim acima de mim, ridiculariza-me. Fazia-me ínfimo, pobre, sem
qualquer poder, e abri-la foi um esforço indescritível. Senti o peso da vida
nela, e, enquanto a forçava para frente, ignorei qualquer chance que tinha de
morrer. Sempre soube que seria inevitável, invariavelmente inesperada e, quem
sabe, encantadora. Poderia ser, de algum modo, uma calmaria o que a sucederia.
Ignorei tudo isso, e, naquele pequeno momento presente, como se o passado
desconhecido fosse e o futuro uma incerteza desnecessária e desinteressante,
abri-a. E, sentada, com um vestido que vi há muitos anos, olhava-me. Seus
cabelos eram um pouco enrolados, compridos, e espalhavam-se sobre seus ombros,
caiam sobre seus seios, e seu rosto parecia furtivo. Estava distante. Longe. O
quarto tinha uma cama, apenas, e as paredes eram escuras. A luz estava nela, e
a janela aberta fazia as cortinas balançarem. Não sei qual era o andar, mas,
tal qual antes, havia uma motivação para pular. Eu a conhecia. Sabia disso. De
alguma forma, de algum modo a conhecia. Ela tinha um rosto, e ele sorria para
mim. Um sorriso largo, que a fazia fechar os olhos. Eu a conhecia. Ela me
conhecia. Beijou-me no rosto e senti seu corpo junto ao meu num abraço. Era
quente, ao contrário da brisa que vinha pela janela. Estava calma, como se tudo
aquilo fosse programado.
A porta abre. E ela há uma pessoa que me chama. A garota
sorri e pede que eu vá, e sem opção, aceito. Saio pela porta, e o corredor
agora torna-se um espaço sem dimensões. As paredes não existem, nem o teto. Há,
apenas, um espaço vazio pelo qual caminhamos. E uma porta, muito longe. Sentia
como se fosse um pedaço de mim que caminhava junto dele. O restante estava no
quarto, junto dela, em seus braços, em seus cabelos, em seus lábios. Quem
caminhava era uma parte arrancada a força de mim. Tinha uma porta, e ela era comum,
de tamanho normal. Entramos e outras pessoas estavam sentadas, todas com o
mesmo rosto debaixo da luz fraca da lâmpada. Era um cômodo só, estreito, com
várias cadeiras e várias pessoas iguais. E todas eram iguais a mim. A mesma
feição, os mesmos detalhes. Quem trouxera-me aqui fora eu mesmo. Preso, agora,
tentava voltar. Não havia porta, apenas uma janela que ocupava toda a parede, e
joguei-me.
Não sei por quanto tempo cai, mas pareceu-me infinito. E
enquanto despencava, tinha sua imagem em mente, e a reconheci.
Ela está ao meu lado. Caminhamos juntos. Tudo é muito
cinza, e em alguns cantos há poças d’água. Ela fala e eu apenas ouço, como se
minha existência ali fosse acessória, ou como se eu simplesmente não existisse.
Ela caminhava e falava e eu podia sentia sua mão junto da minha.
Então, pego-me novamente só em frente à porta de onde a
encontrei. Porém, ao contrário de outrora, trancada, e minhas chaves não
funcionavam ali. Não ouvia nada vindo de dentro. Ela havia sumido, e eu estava
preso com suas lembranças. O fosso do elevador me chama novamente.
Douglas Kuspiosz
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