A coletânea apresenta crônicas de seis livros diferentes: A donzela e
a Moura Torta (1948), 100 crônicas escolhidas (1958), O caçador
de tatu (1967), As terras ásperas (1993), O homem e o tempo (1995)
e Falso mar, falso mundo (2002). São 71 crônicas selecionadas dos seis
livros.
As crônicas de Rachel de Queiroz, sabe-se que a autora, por conta de
suas experiências de vida e de sua formação política, procurou tratar de
temática social, seja para tratar das questões da seca, seja para falar da
difícil vida do trabalhador comum no Brasil. Mas vai além disso ao tratar dos aspectos
cotidianos e de sua vida pessoal, cuja reflexão ultrapassa a mera
subjetividade, pois aborda assuntos de ordem literária, questões relacionadas à
tradição e à modernidade, bem como fatos do cotidiano que a autora teria
vivenciado.
Em “O Catalão”, a história de um mestre-curtidor que trabalhava para o
pai dela. Tal mestre fez parte do seu imaginário infantil e mais tarde veio a
saber que ele morrera lutando na Espanha, por conta das lutas separatistas na
Catalunha.
Outras histórias da Rachel criança são lembradas pela mulher já adulta,
com mais de trinta anos, e servem para compor o cenário da sua vida pessoal e também
da sociabilidade nacional.
Em “O grande circo zoológico”, narra seu encontro com uma trupe circense
que viajava às margens do rio São Francisco. Depois de ver os animais e tecer
alguns comentários, faz uma análise dos artistas do circo, dando destaque para
o fato de que normalmente pertencem à mesma família ou constituem família entre
eles. Trata-se, pois, de uma análise sociológica sem academicismos, mas que
expressa um modo de olhar para o Brasil que vai do poético ao jornalístico.
As histórias não têm um cenário único: este pode ser o Nordeste em
geral, o Ceará em particular ou o Rio de Janeiro, onde morou, ou as viagens que
fez, à Europa, por exemplo.
“Retrato de um brasileiro”, que narra a história de um homem comum, que
teve suas desilusões amorosos, o desapontamento pelos filhos, o trabalho
constante e o pouco reconhecimento dos seus. Em paralelo, trata das eleições pós-ditadura
getulista, em que a personagem conclui que valia a pena votar naquele que
pagava mais que propriamente em projetos para a coletividade.
“Morreu um expedicionário”, que narra a história de um jovem que
acreditava “na verdade, na justiça e na liberdade”, por isso foi lutar pela FEB
na 2a Guerra Mundial. O que Rachel parece pretender é a compreensão das razões
que levam um indivíduo, jovem, com a vida pela frente, sem a obrigação de lutar
em uma guerra, a querer tornar-se mártir por seu país. É o mérito da autora o
de tentar as motivações humanas, para o bem ou para o mal.
“O padre Cícero Romão Batista”, como especifica o título, fala sobre o
santo popular, o padre Cícero, relatando, de modo um tanto descrente, como veio
a se tornar referência no sertão e, aos poucos, em todo o Nordeste.
Em “O senhor são João”, defende o Nordeste contra seus detratores no sul
do Brasil, que veriam a região como local apenas de dança e festa. Para Rachel,
que era cearense, embora as festas existissem, elas seriam concentradas e
poucas, dando certa alegria à população.
Em “Rosa e o fuzileiro”,
conta a história da moça da Ilha do Governador que tinha um
pai que era uma fera, mas que acaba se apaixonando por um fuzileiro
naval, mesmo sob as ameaças de morte por parte do pai.
“Vozes d’África”, é interessante saber que o título que faz referência a
famoso poema de Castro Alves. Na crônica, temos a história de uma família de
negros cuja origem remonta à época da escravidão.
Há também as crônicas sobre personagens misteriosos que fazem parte do
imaginário da Rachel menina. É o caso de “O solitário”, história de um homem
misterioso que morava
sozinho no sertão. A autora recorda dele e diz que morreu como viveu, de
modo solitário. Uma espécie de misantropo. Em “Jimmy”, o retrato em um bar
parisiense, com destaque para a personagem do título.
Em “Natal”, em que relata não ter saudade de natal nenhum, nem mesmo o
da infância; aliás, nem sequer tem saudade da infância.
Em “Terra”, publicada em O homem e o tempo, fala do campo, mas não à
maneira idílica dos árcades, e sim pela óptica do sertanejo e sua vida difícil,
de enfrentamento das condições adversas causadas pela seca.
Na crônica “Felicidade” a autora procura mostrar que o sertanejo pode
ser muito mais feliz que um morador da cidade grande, pois suas expectativas e
desejos são menores, restringem-se às necessidades básicas: moradia, alimentação,
vestuário. Isso é o que basta.
Uma
das crônicas que têm como objetivo a abordagem da literatura é “O nosso humilde
ofício de escrever”. Inicia a crônica dizendo que uma jovem escritora havia lhe
perguntado como se deveria fazer para escrever um romance.
Sobre
a velhice, há diversas crônicas, como “Não aconselho envelhecer”, “Os Noventa”
também revela a preocupação da autora com tempo. Neste caso, porém, é o tempo
em geral, e não a do corpo, a do indivíduo. Trata-se de uma crônica que faz um
resumo da década, com destaque para o futebol e a perda do pentacampeonato
mundial de futebol em 1998; fala sobre os amigos de profissão, os amigos; sobre
as origens no sertão cearense, a vida no Rio de Janeiro.
As crônicas de Rachel abordam os temais mais variados. Em “Quaresma”,
fala sobre o choque entre a moral, entre o olhar vigilante dos pais e mesmo da
Igreja e o desejo de liberdade dos jovens (de todas as épocas, por sinal), que
querem antes se divertir que propriamente obedecer a regras. Ou em “Praia do Flamengo”,
em que a autora traça um perfil dos frequentadores da praia, de acordo com o
horário, expectativas, faixa etária, indo
das mães, babás e crianças até os jovens que querem se exibir mutuamente
como meio de conquista, de paquera, passando pelas domésticas, que só podem
frequentar a praia no fim do dia, depois de largarem o expediente.
Em
resumo, Rachel de Queiroz retrata, nessa coletânea de crônicas, sua visão sobre
a vida e sobre o cotidiano, sobre sua experiência pessoal e a observada.
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