O amor. O amor é essa coisa que inspira
as artes desde sempre. Desde que a vida existe, o amor existe – e inspira tudo.
Desde Shakespeare até os livros lançados na semana passada. Chopin compôs sobre
ele, Hemingway, em seu exílio em Paris, colocou-o como uma faísca em meio à
guerra, como a beleza que sobressai-se à feiura da vida. Como era de se
esperar, o amor está presente no cinema desde as primeiras experiências dos
irmãos Lumière com seu cinematógrafo, até os últimos lançamentos. E ele é a
síntese da trilogia “Before”, escrita e dirigida por Richard Linklater, hoje
muito conhecido pelo filme Boyhood.
Ethan Hawke e Julie Delpy estrelam toda a trilogia
Um homem e uma mulher discutem durante
uma viagem de trem. Eles falam alemão e, a princípio, o objetivo da cena não é
que entendamos a motivação do conflito, mas sim ilustrar o desconforto causado
pela discussão. Algumas pessoas olham e uma mulher, tendo sua leitura de Madame
Edwarda atrapalhada, levanta-se. Ela vai aos fundos do vagão e senta-se numa
poltrona vazia e, alguns segundos depois, o casal passa discutindo por ela.
Nesse momento, como se a vida fosse feita por esses pequenos momentos do acaso,
que volta e meia são questionados pela conjunção subordinativa condicional
“se”, a vida da jovem francesa Celine (Julie Delpy) mudou. Ela ouve uma voz e
conhece Jesse (Ethan Hawke), e alguns minutos após conversarem, decidem passar
o dia juntos. “Salte adiante, dez,
vinte anos e você está casada e as coisas estão entediantes. Então, você começa
a pensar em todos os caras que conheceu no passado. Eu sou um deles”, ele diz.
Esse é o enredo de Before Sunrise (Antes
do Amanhecer), filme de 1995 escrito e dirigido por Linklater. A premissa do
filme parte do encontro casual de um homem e uma mulher que, vindo e indo para
lugares diferentes, decidem descer em Viena e passar o dia juntos, até
amanhecer do outro dia, quando ele pegaria um avião aos EUA. Pondo assim,
apenas, parece ser simples e quem sabe, se a ideia surgisse com outro diretor,
de fato seria; ou se Matthew McConaughey atuasse antes da reviravolta em sua
carreira, poderíamos ter um comédia romântica aos moldes de “Minhas Adoráveis
Ex-Namoradas”. Falando em McConaughey, ele trabalhou com Linklater em “Dazed
and Confused” (Jovens, Loucos e Rebeldes), em 1993. Esse foi o primeiro grande
filme do diretor, que até então só havia produzido dois curtas-metragens. Hoje,
quem ouve o nome de Richard Linklater provavelmente o reconhece pelo “projeto
de doze anos” que foi Boyhood, lançado em 2013. Porém, a primeira grande e
complexa experiência cinematográfica dele, onde os atores envelhecem
cronologicamente junto com as personagens, foi a trilogia “Before”, que, ao
total, levou dezoito anos para ficar pronta – cada filme com um intervalo de
nove anos.
A beleza do filme está nos pequenos detalhes
“Before
Sunrise” é um filme de diálogos. Todo ele resume-se em duas pessoas caminhando
e conversando, enquanto a câmera desliza e os captura. Sendo assim, o seu
grande diferencial é um bom roteiro, que apresenta as personagens e
gradativamente, através do que falam, constrói o universo do filme. Percebe-se
que houve um cuidado quase cirúrgico com cada linha de diálogo, pois, segundo o
que Linklater disse mais tarde, nenhuma fala foi improvisada. Desse modo, vê-se
uma entrega muito grande dos atores para construir uma narrativa espontânea,
sensível e humana; é fácil acreditar que aqueles dois realmente se encontraram
pela primeira vez ali e que alguém, de alguma forma, conseguiu filmar tudo sem
ser percebido. Essa espontaneidade não se dá apenas na fala, mas, também, na
linguagem corporal: cada olhar, cada hesitação, cada expressão demonstra um
sentimento que aos poucos cresce - por exemplo, numa cena eles estão ouvindo
uma música da cantora americana Kath Bloom e trocam olhares embaraçados.
Outra
coisa que deve ser reconhecida nesse filme é a cinematografia de Linklater. Ele,
principalmente nos momentos onde os atores caminham e conversam, usa planos
sequências bastante longos e isso é algo que transformou-se numa marca do
diretor, sendo mantido nos seus próximos filmes. Com isso, além da dificuldade
natural, que exige, naturalmente, que os atores estejam bem, há também o fato
de os diálogos serem bastante extensos – e isso é o que mais impressiona. São
quase dez minutos de conversa ininterrupta que captam a essência de uma bela
história.
“Before
Sunrise” é, acima de tudo, um filme de apresentações. Pensado isoladamente ele
ainda funciona, mas, sua grandiosidade aparece quando o inserimos junto com os
demais. Explico: de certa forma, o primeiro filme serve para nos mostrar a
personalidade de Jesse e Celine, e, com o decorrer da história, vemos como isso
gradualmente muda; há, então, não apenas uma preocupação, como já dito, com os
diálogos, mas, também, com a evolução das personagens. Enquanto Jesse é cético,
frio e sentimentalmente magoado, Celine é romântica, sensível e contemplativa.
Quando, às margens do Rio Danúbio, recebem um poema de um poeta, ou “uma versão
parisiense de mendigo”, segundo Jesse, as reações são bastante discrepantes:
Jesse duvida que ele havia escrito naquele momento; Celine fica feliz.
O
amanhecer chega e com ele a separação. Em vários momentos Jesse e Celine
deixaram claro que não gostariam de trocar telefones ou endereços. E, no último
momento antes dele tomar seu avião, decidem voltar a se encontrar depois de
seis meses, naquela cidade, naquela estação, naquela plataforma. “Before
Sunrise” é um filme quase independente, com orçamento médio de dois milhões de
dólares, que marcou e cativou uma época, deixando seus fãs com um gostinho de
quero mais após o final ambíguo: teriam Jesse e Celine ficado juntos?
Os fãs precisaram de nove anos para descobrir se Jesse e Celine voltaram a se encontrar
Essa pergunta demorou nove anos para ser
respondida. Como já dito, Linklater é um diretor que gosta de experimentar e,
nesse tempo entre 1995 e 2004, ele lançou outro filme inovador: “Waking Life”.
O filme foi lançado em 2001 e, ao contrário das animações convencionais, ele
foi totalmente filmado com atores e depois teve sua película pintada, usando a
técnica de rotoscópio. Como era de se esperar, o filme é bastante filosófico,
com excelentes diálogos e, para os fãs da série “Before”, traz uma cena de
Jesse e Celine juntos – o que, de acordo com a discussão deles relembrando duas
frases ditas no primeiro filme, sugeriria que eles encontraram-se seis meses
depois. Porém, não foi o que aconteceu.
“Before Sunset” (Antes
do pôr do sol) foi lançado em 2004 e mantinha Ethan Hawke e Julie Delpy nos
papeis principais, e também como coautores do roteiro.
Logo de cara
descobrimos que eles não encontraram-se. Jesse agora é um escritor famoso e
está numa livraria respondendo algumas questões sobre seu livro, que conta a
história de duas pessoas que encontram-se e decidem passar o dia juntos,
inspirado no que havia acontecido nove anos atrás. Aos poucos, de acordo com as
suas respostas, vemos que eles não ficaram juntos. Mas, em meio a uma resposta,
Jesse olha para o lado e vê, entre aos livros, às estantes, uma mulher. Mais
velha, sim, mas ainda impossível de não reconhecer: era Celine. Assim, tal qual
o primeiro encontro, que nada mais foi que uma coincidência, eles veem-se
novamente. Após conversarem, decidem ir a um café até o horário em que Jesse
pegaria um avião para continuar sua turnê. Tem-se, assim, “Before Sunset”.
Before Sunset mantém a essência de seu antecessor: excelentes diálogos e planos longos
Em relação com o
primeiro filme, a principal inovação que pode ser vista é a presença de Ethan
Hawke e Julie Delpy na construção do roteiro. Dessa forma, essa personificação
dos atores acontece num nível muito maior, levando sua presença na obra como
algo além de uma mera interpretação. O que se tem é um desenvolvimento
concomitante de ator/personagem e uma evolução cronológica do universo “Before”
acompanhando a evolução natural do nosso tempo, o que traz, além de uma
verossimilhança maior, coincidências como a morte de Nina Simone, que é
comentada numa cena.
Apesar do encontro e da
fluidez dos diálogos entre Jesse e Celine no segundo filme, é inevitável
lembrar que há um intervalo de nove anos desde a última vez que eles viram-se.
Sendo assim, é possível notar pequenos detalhes na personalidade de ambos que
pode-se dizer que foram criados a partir de uma mútua influência do encontro do
primeiro filme. Como já dito, Jesse era mais cético que Celine e isso muda: o
Jesse mais velho é muito mais aberto às experiências e à vida de uma forma
geral. É possível afirmar que é uma marca deixada por Celine nele. Entretanto,
isso também pode ser resultado de suas vivências posteriores ao encontro, como,
por exemplo, o fato dele agora ser casado e ter um filho. Já em Celine, vê-se
que ela está muito mais amargurada e, aqueles pequenos momentos de reflexão que
foram vistos anteriormente não combinam mais com a sua atual personalidade –
como quando ela vai ao túmulo das pessoas que morreram afogada no Danúbio e diz
algo como “se ninguém souber que você está morto, é como se não estivesse; ou,
quando ela afirma a Jesse que ele a conquistou quando contou a história sobre
ter visto a imagem de seu avô num arco-íris. E, de certa forma, esse reencontro
possibilitou a eles lembrar como eram no passado, como quando Celine diz: “[o livro] me lembrou quão romântica eu era, de como
eu tinha esperança nas coisas, e agora é como se eu não acreditasse em nada
relacionado ao amor.”
O diálogo entre Jesse e Celine nessa cena é um dos mais importantes para a compreensão da relação entre os dois
O
que se vê, além disso, é que ambos estão infelizes com suas vidas, como se o
fato de nunca terem se encontrado novamente criasse um vazio impossível de ser
preenchido. Como se aquilo que viveram outrora não houvesse sumido, mas,
apenas, repousado, aguardado o momento certo para reaparecer. Isso é mostrado
em pequenos detalhes, olhares não percebidos, gestos. Jesse disse que havia
escrito o livro para tentar encontrar Celine. Assim, aquilo que há tanto tempo
fora reprimido gradualmente torna a aparecer, culminando num dos mais belos
finais já feitos.
Tecnicamente
o filme é semelhante ao primeiro, mas se mostra muito mais espontâneo e
profundo. As discussões não se limitam a o que pensam sobre determinado
assunto, mas, sim, sobre questões que influenciam suas vidas e as consequências
do fato de não terem se encontroado. São consequências exploradas no terceiro
filme, mas que ajudam não só a humanizar as personagens, como também criar uma
sensação de ir além do limite por quem realmente se ama. Mesmo Jesse estando
casado e tendo um filho, vê-se muito claramente a tristeza em seu olhar, e
Celine não vive mais que um relacionamento insípido. Essa infelicidade faz
parecer que todo o tempo anterior ao dia que reencontraram-se em Paris fosse
irrelevante. Eles ignoram tudo para estarem juntos e, após Celine cantar “A
Waltz For A Night”, de fato assim permaneceram. Jesse, agora, decide o voo para
lá.
Mais
nove anos foram necessários para descobrirmos o que aconteceu com Jesse e Celine.
Before Midnight (Antes da Meia Noite) foi lançado em 2013, mantendo o trio
Linklater, Hawke e Delpy como cabeças por trás da história.
O
filme não é mais sobre o que poderia acontecer, mas sim sobre a consolidação do
relacionamento de Jesse e Celine. É muito mais ousado que os anteriores, seja
em termos técnicos quanto em termos narrativos, que busca mostrar o quão
difícil é manter uma relação. “Before Midnight” traz um sentimento de nostalgia
ao manter a mesma formula de outrora: diálogos filosóficos e existenciais,
longos planos sequência, porém com um adicional: o filme foi todo rodado na
Grécia, o que faz com que tenhamos uma qualidade visual invejável.
Jesse
agora é um escritor famoso e está trabalhando num novo título – e, como se
costume, transformou os acontecimentos de “Before Sunset” em um de seus
sucessos. Celine continua trabalhando com empresas não governamentais que atuam
principalmente em países da África, mas, a instabilidade fazem-na cada vez mais
relevar uma oferta para trabalhar com o governo francês.
O
filme começa num aeroporto com Jesse levando um garoto até o embarque. Ele é
Hank – é possível que seu nome “Henry” tenha sido inspirado no protagonista de
“Adeus às Armas”, de Hemingway, já que Jesse sempre se mostrou um grande fã do
escritor. Hank é fruto do primeiro relacionamento de Jesse e logo nos primeiros
diálogos é possível notar que a distância pai-filho fez com que a relação de
ambos fosse complicada, de modo que, apesar do esforço, Jesse não consegue
sentir seu filho próximo, o que o levou a sugerir uma viagem à Grécia.
Em Before Midnight vemos a consolidação do amor do acaso
Após o embarque de Hank, Jesse sai o
aeroporto e encontra Celine, que está encostada num carro; a câmera aos poucos
se aproxima das janelas traseiras e vemos as gêmeas Ella e Nina, filhas do
casal. De certa forma, a presença das duas crianças na cena a seguir, que é um
diálogo entre Jesse e Celine, mostra a mudança e o amadurecimento das
personagens, que agora ao invés de terem um foco para si, precisam pensar no
conjunto familiar. É nessa cena, também, onde acontece a primeira briga, coisa
que se mantém constante no decorrer do filme. A verdade é que Jesse nunca
conseguiu evitar a culpa por ter deixado sua primeira esposa. Não que ele se
preocupasse com ela, mas, sim, com Hank, que acabou sob a guarda dela nos
Estados Unidos. Vê-se que se culpa e Celina sente-se também culpada.
Pode-se, então, dizer que Before
Midnight explora de forma mais explícita o psicológico dos personagens,
pondo-os sempre que possível num debate moral: é certo sacrificar a felicidade
alheia em prol da própria?
Novamente com um orçamento pequeno,
Linklater consegue fazer um bom filme, o mais relevante da trilogia, e fecha
com chave de ouro a história de Jesse e Celine, que, desde o primeiro filme,
passou a ser uma referência de bom roteiro e empenho do elenco, que acabaram
criando um dos mais belos e humanos romances do cinema.
Texto: Douglas Kuspiosz
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