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Crônica - Desculpem o transtorno, mas eu preciso falar sobre a Síria

Foto: Reuters

“ONU suspende ajuda humanitária na Síria”. Deparei-me com essa notícia ainda pela manhã, me deu um nó na garganta. Oficialmente ninguém mais se importava com a Síria.
“Aviões russos bombardeiam pelo alto. Milícias iraquianas e libanesas com apoio de iranianos avançam em solo. Um grupo variado de rebeldes sírios respaldados por Estados Unidos, Turquia, Arábia Saudita e Catar tenta conter essas milícias”, dizia uma reportagem no jornal The Washington Post.

Mas a Síria não importa.

Os protestos começaram em 2011 e, no início, opositores ao governo guerrilhavam contra o exército do presidente Bashar al-Assad em busca da democracia. Desde então mais de 11 milhões de pessoas foram obrigadas a deixar suas casas, enquanto 250 mil jamais deixariam a Síria. Elas foram o efeito colateral de tantos anos de guerra.

Mas a Síria não importa.

Adolescentes foram executados em praça pública por picharem mensagens de oposição ao governo. Civis foram abatidos pela força nacional que deveria, por dever, defende-los. Vidas e mais vidas foram tratadas como números, como consequências.

Mas a Síria não importa.

Aproveitando-se do caos o Estado Islâmico avançou sobre a Síria, conquistando territórios, expandindo sua organização. Além disso, a Frente al-Nusra, formada por jihadistas ligados à Al-Qaeda, também aproveitou a guerra Síria para reforçar seus interesses. Os Estados Unidos não ficaram atrás, a participação deles vem do céu, com seus drones e ataques aéreos em uma prerrogativa de “enfraquecer” o Estado Islâmico. A Rússia também se une a festa alvejando terroristas que estão na Síria. Veja você leitor, que ataques aéreos ainda não são extremamente eficazes e certeiros, eles não contam com um sensor que identifica e atinge apenas terroristas. Já são 250 mil pessoas que jamais deixarão a Síria.

Mas a Síria não importa.

Quem sofre não é o presidente, não é os Estados Unidos, não é a Rússia, não é o Estado Islâmico. Quem está sendo dizimado são pessoas como eu e você, caro leitor. São pais, mães, filhos e irmãos. São pessoas com histórias, sentimentos, lembranças e sonhos. Não são números, não são consequências. Somos eu e você.

Mas a Síria não importa.

Não importa para os governantes, não importa para outros países, não é pauta das Organizações das Nações Unidas. Por que você deveria se preocupar não é mesmo? Existem coisas maiores acontecendo na sua vida. Enquanto escrevia esse texto ouvia pessoas próximas comentando assuntos fúteis e banais. A última festa, a próxima festa. O sapato que era um problema, afinal, não combinava com a roupa. Todas as manifestações em redes sociais em busca de validação social. Senti-me enojada com o comportamento humano. Porém não me tome como prepotente, em 2011 a Síria também não me interessava, estava preocupada demais conhecendo o maior número de cidades possíveis em um mochilão que durou cerca de um mês. Nessa viagem conheci a mim mesma, entendi certas coisas que precisava, sobre mim e sobre o universo. E agora a Síria me importava.

Mas a Síria não importa.

Esquecemos que estamos no mesmo mundo como unidade. Somos 7 bilhões de indivíduos com histórias, lembranças, sentimentos e sonhos. Sua vida não vale mais que a minha, a minha não vale mais que a sua. A vida dos Sírios definitivamente não vale menos que nenhuma outra.

Mas a Síria não importa.

As 500 mil pessoas dizimadas em Ruanda não importam, assim como os 6 milhões de judeus que foram exterminados na Segunda Guerra Mundial. Sempre foram números, números ensinados nas aulas de História, números sem histórias, sem lembranças, sem sentimentos e sem sonhos. E agora, que o genocídio está alocado na Síria, também somos confrontados com numerais. Outra parte da nossa história mundial escrita a sangue, mas já estamos tão acostumados a isso não é mesmo? A banalidade do mal, como diria Hannah Arendt.

Sabe por que a Síria não importa?

Não vivemos lá, não estamos morando em escombros esperando o próximo bombardeio, não estamos fugindo do nosso país ou sendo massacrados em via pública. Não. Nossos problemas são outros. Nossos problemas são a aparência, o status social, a vida alheia (digo isso no quesito fofoca, afinal é aí que a vida alheia interessa). A empatia está morta, cada umbigo está ocupado demais com seu próprio mundo. Os temas relevantes são a separação daquele casal famoso de Hollywood ou uma carta ridícula escrita por um pseudo colunista. Isso importa.

A Síria não importa.

Por mais uma vez me questionei por que os seres humanos fazem isso aos seus semelhantes, não obtive uma resposta, como não obtive nos últimos 4 anos, quando comecei a remoer tudo isso na minha cabeça. Não adianta a Síria não vai importar. Nenhum conflito vai importar, nada que não esteja dentro do nosso mundinho insignificante vai afetar nossa maneira de viver. Quem sabe após você ler esse texto, siga para a sua balada periódica, celebrando cada centavo do dinheiro dos seus pais ou do seu próprio trabalho, afinal, você ainda pode voltar para casa e dormir tranquilamente no aconchego da sua cama.


Porque a Síria não importa.


Amanda Crissi

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